Saveiros

45ª Regata João das Botas

“Saveiro partiu de noite
Madrugada não voltou
O marinheiro bonito
Sereia do mar levou

A noite que ele não veio
Foi de tristeza pra mim
Saveiro voltou sozinho
Triste noite foi pra mim”

Dorival Caymmi

Saveiros

“Ninguém pode fugir à fascinação dos saveiros. Sem eles, a beleza deste golfo que é a própria história de quatrocentos anos de grandeza do Brasil seria incompleta. Desde que se plantou aqui a bandeira da civilização, os saveiros têm trazido sua contribuição de utilidade e de beleza. Vejam-se os versos dos primeiros poetas e já os saveiros eram mencionados. Busquem-se as coleções dos primeiros poemas aqui publicados e já se encontrarão menções às embarcações que figuram como característica dos mares do Recôncavo Baiano.

Não se procure a definição de saveiros nos dicionários porque os pobres donos da língua sempre se repetem uns aos outros e dão os saveiros como meras embarcações fluviais. O sentido vivo e humano da embarcação baiana está nos versos dos seus poetas, nos seus cancioneiros, na boca dos tocadores de violão.

De poesia e de canto é a história do saveiro baiano. Vejam as canções dos marinheiros, os sambas, as batucadas, as modinhas dos violões: a presença do saveiro é inevitável.

Outros que não poetas, os cantadores, os compositores, deixam-se também influenciar pela vida dos saveiros e seus donos. Falemos de Xavier Marques e Jorge Amado, que levaram para os seus romances as histórias dos homens dos mares da Bahia: um, em histórias singelas e ingênuas; o outro, o grande romancista da nossa gente, realizando o seu Mar Morto, história de Guma e de Lívia, no qual o saveiro assume o papel de personagem”.

Extraído do livro “Bahia – Imagens da terra e do povo” escrito por Odorico Tavares em 1951


“Nem só de poesia é a história dos saveiros. Ela é, muitas vezes, de luta e dificuldades. Quantas vezes, no passado, muitos escravos não fugiram em saveiros, não foram esconder-se em outras praias, trazidos pelos seus irmãos libertos? Em quantas lutas pela independência, em quantas rebeliões pela liberdade, não se lançou mão deles?

Vendo-os chegar e sair às dezenas, poucos pensarão no rendimento que trazem para a economia da cidade de Salvador. Porque o abastecimento da capital é feito, na sua maioria, por essas embarcações. O recôncavo, onde se estabeleceu a ‘civilização mais sedentária que o português findou nos trópicos’, como acentua o sociólogo Gilberto Freyre – este Recôncavo de velhas cidades e de ilhas paradisíacas é todo comunicado pelos saveiros que correm seus mares, noite e dia. Trazem lenha e carvão de Itaparica e de Jaguaribe, café e cacau de Nazaré, farinha, bananas, laranjas e verduras de Maragogipe, charutos e fardos de fumo de Cachoeira e São Félix. Toda a produção da fértil região da Bahia, que vem se expor todos os dias na Rampa do Mercado ou na feira de Água dos Meninos. À tarde regressam, levando para seus pequenos portos de origem, entrando pelos rios adentro, conduzindo os produtos importados, a farinha de trigo, o querosene, os gêneros alimentícios que vêm do sul e do norte.

Os saveiros hoje não pertencem ao homem do mar e sim ao ‘empreitista’. São feitos nos estaleiros de Santo Amaro de Catu, em Mar Grande, em Itaparica, em Jaguaribe; sucupira, itaipeba, camassari, louro, uricurana são as madeiras preferidas.

Sabe-se que o saveiro varia de tipo: tem os chamados de tráfego, de pescaria e de carga. Acostados na rampa, seus nomes religiosos e artísticos refletem as características do povo baiano: ‘Primeiramente Deus’, ‘Deus te salve’, ‘Deus te guie’, ‘Recreio de Deus’, ‘Auxílio de Deus’, ‘Proteção de São Roque’, ‘Sinal da Cruz’, ‘São Pedro’, ‘Flor das Candeias’, ‘Flor da Mangueira’, ‘Flor da Maré’, ‘Flor das Ondas’, ‘Flor do Paraíso’…”
Extraído do livro “Bahia – Imagens da terra e do povo”, escrito por Odorico Tavares em 1951

Saveiro de Vela-de-içar

O primeiro passo da transformação da caravela em saveiro foi a substituição das velas bastardas por velas latinas quadrangulares. Os mastros eram feitos de troncos brutos e tortuosos. Para facilitar a manobra de redução do pano nos momentos das rajadas, o mastro tornou-se flexível, sem estaiamento, ou seja, sem os cabos que o sustentam.

Conhecidas a princípio como Barcos do Recôncavo, essas embarcações possuíam três mastros, sendo que os dois de ré armavam velas latinas quadrangulares com a carangueja (verga da vela grande) quase na horizontal. No mastro da vela grande da proa, ou traquete, armava-se uma vela de terço ou pendão. Construídas rudemente de madeira sobre quilha e cavername, nem sempre simétricas, essas embarcações eram funcionais e rápidas.

O Barco do Recôncavo foi sofrendo gradativas alterações, até transformar-se no que conhecemos como o Saveiro de Vela-de-içar. A primeira mudança foi a perda do mastro de ré e do prolongamento da popa que envolvia o leme. Em seguida, já neste século, perdeu-se o traquete, substituído, em alguns casos, por uma pequena vela triangular.

A forma do casco permaneceu inalterada, com o fundo redondo. Apesar da perda do traquete, a proa redonda e extremamente arrojada se manteve, com a parte superior da roda de proa (capelo) bem saliente para apoiar a bolineira.

O Saveiro de Vela-de-içar exposto no Museu Nacional do Mar foi construído em Maragogipe, no Recôncavo Baiano. Utilizado como meio de transporte por cerca de 20 anos, sua última função foi carregar tijolos. Adquirido em 1992, chegou a São Francisco do Sul por via terrestre, percorrendo mais de 2 mil quilômetros.

Saveiro de Vela-de-pena

Com a mesma origem do Saveiro de Vela-de-içar existe outra embarcação, de menor porte, conhecida como Saveiro de Vela-de-pena. O nome se deve à sua armação com um ou dois bastardos, semelhantes aos das caravelas latinas. Cada vela é envergada numa vara longa e flexível (verga), içada por um cabo grosso que trabalha de trás à frente, em um furo aberto no topo do mastro. O mastro é curto e sem cabos de sustentação, permitindo que a vela passe pela frente do mastro na virada de bordo.

Outras particularidades dessa embarcação são a boca aberta e a disposição dos bancos dos remadores. Além disso, a proa redonda é mantida, embora menos arrojada do que a dos outros barcos baianos. A popa desse saveiro – que era utilizado, principalmente, na pesca em alto mar e no transporte de passageiros – é proporcionalmente mais larga do que a do Saveiro de Vela-de-içar.

O Saveiro de Vela-de-pena em exposição no Museu Nacional do Mar foi construído na Gamboa do Morro, localidade de Morro de São Paulo (Ilha de Tinharé, Bahia), e utilizado durante cinco anos na pesca. Adquirido em 2000, foi transportado por via terrestre até São Francisco do Sul.

Também no Morro de São Paulo, ao sul de Salvador, surgiu uma embarcação da mesma família, chamada Saveiro do Morro. De maior porte que os da Baía de Todos os Santos, ele também era construído para a pesca em mar aberto.

O graminho

Apesar da enorme variedade de saveiros construídos ao longo da história para usos diferenciados, em diferentes estaleiros e por diversos mestres, eles sempre possuíram uma impressionante homogeneidade de forma. E o responsável por isso é o graminho, uma peça de madeira similar ao ábaco, que serve para orientar o construtor do barco.

Trazido da Índia pelos portugueses, mas com origens no antigo Egito e na China milenar, o graminho é, ao olhar do leigo, apenas uma tábua riscada. Para os que sabem usá-lo, contém parâmetros que dotam o artesão, de forma simples e compreensiva, de um volume de informações técnicas – estruturais e funcionais –, que são fundamentais para a construção da embarcação.

Raiz indiana

Muito se fala sobre a influência africana na Bahia, mas há que se ressaltar também a tradição oriental, principalmente indiana. Segundo Lev Smarcevski, além do graminho, fundamental na construção do saveiro, também vieram da Índia para o Brasil o próprio saveiro, o carro-de-boi, o monjolo (socador de grãos movido à água corrente), a casa de pau-a-pique, a renda de bilro e muitos outros elementos da cultura indiana do século XVI. Desses, os mais importantes talvez tenham sido o saveiro e o carro-de-boi, que por séculos transportaram homens e riquezas, por mar e terra, na Bahia e em grande parte do Brasil.

Estaleiros

Os saveiros da Bahia foram construídos em estaleiros de diversas localidades do Recôncavo Baiano: Massaranduba e Cabrito em Itagipe; Santo Amaro, São Roque, Cachoeira, São Félix, Ilha do Bom Jesus, Madre de Deus, São Francisco do Conde, Santo Amaro do Catu, Tubarão, Salinas da Margarida, Conceição de Salinas, Itaparica, Caboto, entre outros. Os saveiros dessas águas tinham características comuns aos barcos do Recôncavo.

Já os saveiros de barra-fora, mais robustos, com proa de pouco lançamento e mastreações múltiplas, possuíam características próprias para a navegação em alto mar. Eram construídos na costa sul da Bahia: Taperoá, Valença, Cairu, Camamu, Cajaíba, Ilha Grande, Ilhéus, Comuruxatiba, Canasvieiras, Porto Seguro, Caravelas, Nova Viçosa e outras.

Saveiros ou Saveleiros

O nome saveiro originou-se de saveleiro, barco usado nos rios de Portugal para a pesca do savel. Significa também barqueiro. Dependendo do dicionário, variam as características do barco: estreito, comprido, pequeno, com um ou dois mastros, de remo, de transporte ou de pesca, de fundo chato…

De fato existem diversas variáveis que influenciam na construção de um saveiro. Um mestre de construção naval as resumiria da seguinte forma: a função (pesca, transporte de carga ou passageiro); a dimensão (que está ligada ao peso, volume e tipo de carga); a mastreação e o velame (para mar alto, rios ou braços de mar); além do balanço de proa, do convés de popa, do tombadilho, das escotilhas, das cabines, do leme, do tijupá, do xapité…

Madeira de fibra

Por que os mastros de saveiros raramente quebram? Conta-se que os mestres da construção naval costumavam esperar o momento certo – a lua cheia – para buscar a madeira que daria forma ao mastro mais resistente. Cortada no período de força da lua, ela era enterrada na lama dos mangues por um longo período de cura.

A importância da fase da lua no corte da madeira se justifica por um fator físico, de influência da lua sobre os líquidos. Com a lua cheia, uma quantidade maior de seiva é preservada no organismo da madeira, dando-lhe uma qualidade superior e menos ressecada do que aquela tirada em outro período.

As madeiras usadas eram a bariba, o conduru, o sucupira, o inhaíba, o pau-d’óleo e a capoava vermelha. Escolhiam-se os troncos das árvores crescidas nos vales, por serem áreas coletoras de água dos morros. Devido às terras úmidas e ao baixio do terreno, essas árvores ganham qualidades especiais: têm crescimento rápido, são ricas em seiva, altas e finas por buscarem os raios solares. Depois de escolhida a árvore, dela usava-se apenas o âmago, sendo retirada a casca e as partes brancas da periferia.

Todo esse preparo se devia à grande responsabilidade do mastro, que chegava a atingir alturas superiores a 20 metros e a pesar mais de 1 tonelada. Implantado com uma inclinação pronunciada para a popa da embarcação, ele ficava protegido pelo próprio peso, trabalhando com as velas para assegurar a integridade do saveiro.

Regata de Saveiros João das Botas

As embarcações mais tradicionais da baía de Todos os Santos – os saveiros e as canoas a vela – competem na Regata João das Botas, criada em 1969, para homenagear o tenente de mesmo nome, legendário guerrilheiro naval da Guerra de Independência na Bahia.

Pescador, negro, João das Botas comandou índios, cafusos e mamelucos na defesa da ilha de Itaparica. Em 1822, sua improvisada força naval derrotou a esquadra portuguesa do general Madeira, formada por 11 navios de combate, em uma batalha que durou três horas. Depois atravessou com seus homens o Recôncavo, da ilha a Salvador, em barcos, jangadas e canoas, em uma tempestuosa noite de julho, para expulsar definitivamente os portugueses da Bahia.

Interrompida entre 1992 e 1995, a Regata de Saveiros João das Botas, disputada no interior da Baía de Todos os Santos em raia triangular, transforma anualmente o local no palco de uma festa comandada pelos animados saveiristas baianos.

Fonte: Museu Nacional do Mar

logo_perfil_navega Navega Jaguaripe – Resgate Cultural dos Saveiros Vela de Içar


 

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